terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Nocturno

Paixão, um filme de Margarida Gil

...quando un uómo comincia a toccare con le parole arriva lontano con le mani...

Neruda, Troisi e Cucinotta...eternos!
Via Raquel Serejo Martins

Nyx, deusa da noite (William-Adolphe Bouguereau - La Nuit (1883)

(...)
és o sublime que me antecipa.
o acordo dos monólogos na elaboração do discurso que o vento largará e que provocará a debandada das núvens e a dispersão das sementes.

na planicie árida onde os homens repousam crescem circulos de fogo onde se queimam as verdades até nada mais serem
são centros ferteis onde nenhuma palavra é concebida sem a anuência da vastidão, o invisivel nocturno
de onde nenhuma palavra se evade sem que se derrame, pelo peso, a sua essência e se inflamem os medos - as víboras - os dedos,
onde todas e cada uma das palavras que nascem e morrem, se recriam enquanto estigmas.

é o teu nome a origem do encantamento.
o entremeio, a pauta, ora dia, ora noite,
o sustenido rebento do Caos.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Caracol

Rayuela capítulo 7

Toco a tua boca.
Com um dedo, toco a borda da tua boca, desenhando-a como se saísse da minha mão, como se a tua boca se entreabrisse pela primeira vez, e basta-me fechar os olhos para tudo desfazer e começar de novo, faço nascer outra vez a boca que desejo, a boca que a minha mão define e desenha na tua cara, uma boca escolhida entre todas as bocas, escolhida por mim com soberana liberdade para desenhá-la com a minha mão na tua cara e que, por um acaso que não procuro compreender, coincide exactamente com a tua boca, que sorri por baixo da que a minha mão te desenha.
Olhas-me, de perto me olhas, cada vez mais de perto, e então brincamos aos ciclopes, olhando-nos cada vez mais de perto. Os olhos agigantam-se, aproximam-se entre si, sobrepõem-se, e os ciclopes olham-se, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam sem vontade, mordendo-se com os lábios, quase não apoiando a língua nos dentes, brincando nos seus espaços onde um ar pesado vai e vem com um perfume velho e um silêncio. Então as minhas mãos tentam fundir-se no teu cabelo, acariciar lentamente as profundezas do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de uma fragrância obscura. E se nos mordemos a dor é doce, e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo do fôlego, essa morte instantânea é bela. E há apenas uma saliva e apenas um sabor a fruta madura, e eu sinto-te tremer em mim como a lua na água.»
in O Jogo do Mundo (Rayuela), Cavalo de Ferro, 2008

Rayuela Capítulo 7 - Na voz de Julio Cortazar

domingo, 29 de janeiro de 2012

cigarros Nazir

Após a morte de meu avô, ao esquadrinhar o seu quarto-maravilha, espécie de bric-à-brac científico-artístico, encontrei um maço intacto de cigarros Nazir e uma boquilha de cerejeira. Embolsei o tesouro.
Na Primavera, encontro-me uma manhã em Maisons-Laffitte, entre ervas altas e cravos selvagens, abrindo o maço e fumando um dos cigarros. A sensação de liberdade, de luxo, de futuro, foi tão forte, que nunca, aconteça o que acontecer, nunca sentirei nada de análogo. Poderão nomear-me rei ou guilhotinar-me: a surpresa, a estranheza, não seriam mais intensas do que esta entrada interdita no universo das pessoas grandes; universo de lutos e amargura.
Uma coisa ainda me encanta, me transporta instantaneamente à infância: a tempestade. Mal ela ribomba, mal ela solta a sua vasta claridade malva, inunda-me uma doçura, uma calma. Eu detestava tanto a nossa casa de campo, vazia, uns e outros partindo (para ocupações fora), como detesto que leiam o jornal defronte de mim. A tempestade assegurava-me uma casa cheia, lume, jogos, um dia íntimo e sem desertores. Sem dúvida é esta a antiga sensação de intimidade que comanda esta alegria logo que escuto a tempestade.


(tradução de Maria Teresa Horta)
in Ópio, Ulisseia

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

encontramo-nos, desencontramo-nos e encontramos novas pessoas


But there is really nothing, nothing we can do.
Love must be forgotten.
Life can always start up anew.
The models will have children, we'll get a divorce,
we'll find some more models,
Everything must run its course.

my girlfriend's girlfriend

"Her and me and her and she and me"*

Pintura: As Virgens de Klimt
* Letra: my girlfriend's friend dos Type O Negative 

CANÇÃO DA VIDA, 1

Caem-lhe as peças de xadrez do tabuleiro derrubadas por movimentos mal calculados. Ouvem-se no andar de baixo a embaterem no soalho e calarem-se num som trémulo, quase um lamento. Ele apanha-as e volta a colocá-las nos lugares de que se lembra. Sabe que erra os lugares, principalmente quando cai mais do que uma peça. Sabe também que não importa. Como não importa quem ganha ou quem perde, ele ou o outro que com a sua mão joga do outro lado. Importante é não parar de jogar. Cansar a noite, cumprir a vida, deitar-se para amanhã recomeçar.
in Telhados de Vidro, n.º 14, edição Averno,2010.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Com o Sonho nas Mãos!

Pela Clarabóia procuramos o Deus das Pequenas Coisas e tememos o simbolismo de Némesis. Maldito Karma! Ressoou nas nossas mentes, a horas impróprias para consumo, mas deliciosas na inspiração. Descobrimos a Magia dos Números na beleza da capacidade geométrica do pensamento, na analogia das coisas simples. Intuímos os cometas e viajamos 100 anos e por resposta alguém nos disse  No Meu Peito não Cabem Pássaros. Também não cabia A Boneca de Kokoschka e o seu tamanho, mesmo que grande fosse a Praça de Londres. Debaixo do Vulcão visitamos Orlando, invejamos a dualidade do tempo, esse que passa indiferente às nossas considerações. Sem bagagem nem receio fizemos uma Viagem à Índia. Para trás ficara A Casa de Papel com Bibliotecas Cheias de Fantasmas. Se Isto é um Homem, corroeu-nos as entranhas da existência na brutalidade do nada a que o próprio homem pode reduzir o seu semelhante. Ficamos a saber que Os Peixes Também Sabem Cantar, entre o frio e os enigmas, na Islândia. Aprendemos a chamar Marina ao mistério, à tragédia e à intensidade, e conversámos com Kant e com a reserva mental na exigência de um imperativo categórico pela Crítica da Razão Criminosa. A Mecânica do Coração encheu-se de imagens e fantasia e bateu-nos à porta. N´o Verão Selvagem dos Teus Olhos fomos embalados pelo Anjo Caído. As parábolas Orientais viajaram até cá no barco que trazia Uma Cana de Pesca para o Meu Avô, e não podíamos ter começado sem Um Grande Retrato.


Ao longo do corredor desta viagem encontramo-nos com Pessoa(s) e Torga(s), tivemos Régio(s) pensamentos e muitos, muitos outros encontros. Atrevemo-nos a ser escritores sem livro, partilhamos notícias, apontamentos, curiosidades literárias, textos, imagens e sonhos.
Eis-nos chegados aqui, embriagados por Baudelaire e a acreditar em Deuses Verdes. E convosco, sempre!
Levaram-nos a votos, e nós fomos, na aventura de perceber os nossos ecos. Passamos à segunda fase de votação e aos nossos leitores o devemos. Agradecemos com um brilho nos olhos gigante! E por sabermos que esta aventura vale a pena e que continuaremos sempre a alimenta-la, com a paixão que nos caracteriza, o pedido é simples: Votem em nós e voem connosco! Sem asas de ícaro e com o sonho na mãos:


                     Leva um minuto e não podia ser mais fácil:


1- ir a este link: http://aventar.eu/blogs-do-ano-2011/
2- procurar a categoria Livros / Literatura / Poesia (está por ordem alfabética)
3 – clicar em Clube de Leitores e depois em ‘Vote’.


Obrigado!!
texto e video da autoria do blog Clube de Leitores.

pictures of you


I've been looking so long at these pictures of you
That i almost believe that they're real
I've been living so long with my pictures of you
That i almost believe that the pictures are
All i can feel

Remembering
You standing quiet in the rain
As i ran to your heart to be near
And we kissed as the sky fell in
Holding you close
How i always held close in your fear
Remembering
You running soft through the night
You were bigger and brighter and whiter than snow
And screamed at the make-believe
Screamed at the sky
And you finally found all your courage
To let it all go

Remembering
You fallen into my arms
Crying for the death of your heart
You were stone white
So delicate
Lost in the cold
You were always so lost in the dark
Remembering
You how you used to be
Slow drowned
You were angels
So much more than everything
Hold for the last time then slip away quietly
Open my eyes
But i never see anything

If only i'd thought of the right words
I could have held on to your heart
If only i'd thought of the right words
I wouldn't be breaking apart
All my pictures of you

Looking so long at these pictures of you
But i never hold on to your heart
Looking so long for the words to be true
But always just breaking apart
My pictures of you

There was nothing in the world
That i ever wanted more
Than to feel you deep in my heart
There was nothing in the world
That i ever wanted more
Than to never feel the breaking apart
All my pictures of you

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

LA FURA DEL BAUS em Guimarães

Noite inesquecível. Estou muito orgulhoso de ter feito parte dos Fura neste espectáculo. Só faltam mais 4 :D
Moltes gràcies a tots de La Fura del Baus!

os outros (100º poema)

Despimo-nos dos outros
secamente
e devagar ficamos
enlaçados

Enquanto a noite voa
no seu vento
procuramos a paz fora de tempo
e a ternura a meio da madrugada

Quem foi que nos
deixou
uma certeza?

Quem foi que nos
disse
encantamento?

Quem foi que nos
leu
a nossa vida?

Quem foi que nos
acendeu
o pensamento?

Que viagem difícil
de regresso

Que objecto difícil
de repor

Que adiado veneno
não tomado

Que estranha tempestade
sem fragor

Despidos meu amor
dos outros tarde
mas sedentos de esperança
sempre cedo

Acusados
Suspeitos
Devassados

A fazer amor
do nosso medo

in Poesia Reunida, edição D.Quixote, 2009.

mercy seat

And the mercy seat is burning
And I think my head is glowing
And in a way I'm hoping
To be done with all this weighing up of truth.
An eye for an eye
And a tooth for a tooth
And I've got nothing left to lose
And I'm not afraid to die.

Quando o homem entra na mulher

Quando o homem
entra na mulher,
como a rebentação
batendo na costa,
uma e outra vez,
e a mulher abre a boca de prazer
e os seus dentes brilham
como o alfabeto,
Logos aparece ordenhando uma estrela,
e o homem
dentro da mulher
ata um nó,
de modo que nunca mais
possam voltar a separar-se
e a mulher
trepa a uma flor
e engole o seu pecíolo
e Logos aparece
e solta os seus rios.


Este homem,
esta mulher
com o seu duplo desejo
tentaram atravessar
a cortina de Deus
e conseguiram-no por um instante,
embora Deus
na Sua perversidade
desate o nó.

tradução de Jorge Sousa Braga
Poema retirado daqui.

a gravidade do coração

A água das fontes corre gravemente como a boca de um cão. A rosa intimida-me. Nunca ri. E a árvore dorme de pé. Não brinca. Ordena, por exemplo, à sua sombra: deita-te, descansa, partimos assim que anoitecer. Ao anoitecer, a sombra sobe-lhe para os ramos e partem.
Quem ama escreve nas paredes.
Se eu visse o meu coração, já não teria coragem para te sorrir. Ele trabalha demasiado nesta noite sem lua. Deitado sobre ti, espreito o seu galope, que me traz uma má notícia.

tradução de Inês Dias
in Poésies (1917-1920)

Palavras

Tem cuidado com as palavras
mesmo as milagrosas.
Pelas milagrosas nós fazemos o melhor possível,
por vezes são como uma multidão de insectos
que não nos deixa uma picada mas um beijo.
Podem ser tão boas como dedos.
Podem ser tão seguras como a rocha
onde te sentas.
Mas também podem ser ao mesmo tempo margaridas e [amachucadas.

Contudo, estou apaixonada pelas palavras.
São pombas que caem do tecto.
São seis laranjas santas pousadas no meu regaço.
São as árvores, as pernas do verão,
e o sol, seu impetuoso rosto.

No entanto, falham-me com frequência.
Eu tenho tantas coisas que quero dizer,
tantas histórias, imagens, provérbios, etc.

Mas as palavras não são suficientemente boas,
as erradas beijam-me.
Por vezes voo como uma águia
mas com as asas de uma carriça.

Mas tento ter cuidado
e ser amável com elas.
As palavras e os ovos devem manipular-se com cuidado.
Uma vez partidas há coisas
impossíveis de reparar.

tradução de António Sá Moura
poema retirado daqui.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

The Fury Of Sunsets

Something
cold is in the air,
an aura of ice
and phlegm.
All day I've built
a lifetime and now
the sun sinks to
undo it.
The horizon bleeds
and sucks its thumb.
The little red thumb
goes out of sight.
And I wonder about
this lifetime with myself,
this dream I'm living.
I could eat the sky
like an apple
but I'd rather
ask the first star:
why am I here?
why do I live in this house?
who's responsible?
eh?

let love in

Despair and Deception, Love's ugly little twins
Came a-knocking on my door, I let them in
Darling, you're the punishment for all of my former sins
I let love in
I let love in
The door it opened just a crack, but Love was shrewed and bold
My life flashed before my eyes, it was a horror to behold
A life-sentence sweeping confetti from the floor of a concrete hole
I let love in (4x)

Well I've been bound and gagged and I've been terrorized
And I've been castrated and I've been lobotomized
But never has my tormenter come in such a cunning disguise
I let love in (4x)

O Lord, tell me what I done
Please don't leave me here alone
Where are my friends?
My friends are gone
O Lord, tell me what I done
Please don't leave me here alone
Where are my friends?
My friends are gone
I let love in
I let love in

So if you're sitting all alone and hear a-knocking at you door
and the air is full of promises, well buddy, you've been warned
Far worse to be Love's lover than the lover that Love has scorned
I let love in (6x)

2

Da paixão cansei-me (pode acolher tanta morte um corpo, esse mesmo que brilha à luz do desejo, esse mesmo que guarda a promessa da alegria). A verdade gastou-se (isto é o mais fácil de compreender: a verdade gasta-se, quando chegamos ao lugar de a encontrar, sabemos por fim que não existe). Sobrou o que sou e o que não sou também, pelo meio a linha de uma estreita solidão, e é isto que te dou (isto o que te posso dar). Só aqui, só agora, este sorriso de estar vivo, e por vezes o cansaço (que embora não pareça faz parte do sorriso). E agora já me entendes? E agora ainda me queres?

Elegia

1.
Tempo de dança num vago compasso de bela toada
fecha solene a última festa do longo inverno.
Chove de novo na húmida noite gelada de março;
nada faria prever o perfume da música nova.

Vejo agora teu rosto no espelho da sala dourada;
luzem teus olhos ao brilho das velas nos lustres acesos,
quando de novo a orquestra entoa a música nova,
sempre que soa no brilho da sala a triste gavote.

Música minha alheia não soa às árvores altas:
ramos e folhas ondulam à chuva na escura montanha,
cantam por mim o que vejo ao ver-te no límpido espelho,
hoje que mais do que nunca rebrilham teus olhos brilhantes.

Pena seria portanto perdermos a última dança;
ambos sabemos que vêm vazios compassos de espera,
logo que raie daqui a minutos a pálida aurora,
ela que traz como sempre o ocaso dos nossos amores.

in Relâmpago, n.º 27, Fundação Luís Miguel Nava, Lisboa, 2010.
Poema retirado daqui.

Barco

Até onde irá este barco? o que o espera no mar?
Antes porém da pergunta, há que desenhar as velas,
moderadas na tintura, muito suaves nos contornos.
E, além de marinheiros, haja no barco figuras
libertas e ociosas. E não pareça o pintor
que quis mostrar pela força tudo aquilo que sabia;
pelo contrário, que deixou muitas coisas por pintar.

E só então a pergunta. Aonde irá este barco?
o que o espera no mar? Experimentai na resposta
o caminho mais remoto, que a parte melhor da pintura
não se pode ver de fora, nem sequer se faz com a mão,
apenas com a fantasia. Agora sim, companheiros,
só nos falta um capitão. Querida baleia, a propósito,
acaso sabes de um homem a quem chamavam Ahab?
in Modo fácil de copiar uma cidade,  edição & etc., 2011.

Notas para um fim

Chega de conversas.
Chega de matrimónio.
Chega de veios de perfume num lenço
que não uso há um mês, a sua voz voltando
para me assombrar, e o céu à Hundertwasser
elegia para um coração abandonado
recusando o que antes confundiu com misericórdia.

Nunca é o que queremos, para sempre;
pedimos outra coisa qualquer, um Reich eterno
de presentes inesperados e dolce vita,
flores de pêssego esborratando o vidro e um maduro
vislumbre dos velhos tempos nesta casa
onde, a cada noite, tentámos e não conseguimos ressuscitar
aquela coisa de penas que trouxemos do quintal,
depois de ter vindo morrer no quadrado da nossa janela.


Tradução de Ricardo Marques

Amanhecer

Meu amor, nos vapores dum café
ao amanhecer, meu amor que inverno
longo e que calafrio estar à tua espera! Cá
aonde o mármore do sangue é gelo, e sabe
a frescura até o olho, agora no ermo
ruído além da geada eu que elétrico
ouço, abrindo e fechando eternamente
as portas desertas?... Amor, está parado
o meu pulso: e se o copo no fragor
subtil tem um tremor nos dentes, talvez
seja o eco dessas rodas. Mas tu, amor,
não me digas que agora em vez de ti está o sol
brotando, não me digas que daquelas portas,
eu cá, com teus passos, já estou a aguardar pela morte.

(de «Il passaggio d’Enea», 1956)
Poema retirado daqui.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Foi no teu amor

eu quase amei a forma como tu mentias
foi no teu amor que algo se perdeu

in Foi no teu amor de Manuel Cruz.

Vivo agora aqui

Vivo agora aqui, num quarto fechado, a tua roupa, todos os teus
objectos caem sobre mim como trovões. Há um terror teimoso
que me prende a estas gavetas cheias, já me deixei fulminar
numa noite de onde não me queria levantar, e tu à mesma dormindo,
sem dares por nada. A partir daí a minha testa de zombi chocou
contra vidros, paredes e jarras de flores, é testa dura que não se parte.

Foi missa ligeira a que assistimos sem crer, mais um dos nossos
mortos ia a enterrar, cumprir o dever de aparecer por ali e depois,
deitados, nós dois tão afastados, tão mortos. Ver-te no cinzeiro
fora do quarto, de calças oscilantes, arrumando na distância
Ios teus assuntos práticos, é ver-me nisso tudo que perdi e sentir-me
frio, frio, cada vez mais frio. Tenho andado a pensar no nosso caso
e - tirando da estante um livro - está tudo aqui bem claro, disse.

Nunca serei para ti a Grande Mãe, esse maníaco corpo onde te queres
enroscar e buscas protecção para os temores da noite e de deus.
Não te acompanharei nessa viagem sexual até à exausta escuridão
do infinito, não contes comigo para cobrar impostos à tua amoralidade,
nem penses que me comove a tua pena, a tua dor, o teu sofrimento.

Os teus objectos, todas as tuas coisas, os teus sapatos, a tua tristeza,
já não são bem coisas, são palavras que eu levaria comigo para outra casa.
Serei eu quem me lembro de ter sido? É uma questão que só ocorre
num quarto fechado de paredes desiguais, quando a memória
não é senão um facto igual a tantos outros e o teu cordão de histórias
repete datas - num dia de setembro, por exemplo, amámo-nos.

Dez dias fora. Ao longo dos dez dias vou sentindo cada vez mais
escuridão e contudo no dia marcado para o teu regresso há tanta alegria
na minha boca (mesmo se fechada a boca põe os lábios
de outra maneira, deixa entrever metade dos seus dentes) que
só me apetece escrever um enorme e ridículo poema épico.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Balada da Rua Damasceno Monteiro

ardia de amor pela casa
numa confusão de silêncios ou
dizendo de outro modo

afundava-se numa líquida recordação cardíaca

ocultos pólen pólvora fósforos
a má reputação dos dedos
paixão cartografada remota
toponímia de enganos

braço a braço crescia alto
o incêndio no interior do peito
deliberado ritual de lâminas e pele
a transparente certeza
da cicatriz

mas ardia de amor pela casa soturna
silêncio dando para o saguão luz muitíssimo
extinta por sobre a larga extensão destruída

morrer, principalmente de amor, é
uma compendiosa tarefa doméstica

dentro do coração antigo
serei breve

in Contra a Manhã Burra, edição Mariposa Azual, 2009.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Eu receberia as piores notícias dos seus lábios

O amor é sexualmente transmissível.

A arte de ser feliz

Houve um tempo em que minha janela se abria
sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada,
e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde,
e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Ás vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Vem Comigo

vem comigo
ver as pirâmides fantásticas do vento
no interior luminoso da terra encontrarás
o segredo de quartzo para desvendares o tempo
onde contemplamos a fulva doçura das cerejas

iremos para onde os restos de vida não acordem
a dor da imensa árvore a sombra
dos cabelos carregados de pólenes e de astros
crescemos lado a lado com o dragão
o súbito relâmpago dos frutos amadurecendo
iluminará por um instante as águas do jardim
e o alecrim perfumará os noctívagos passos
há muito prisioneiros no barro
onde o rosto se transforme e morre
e já não nos pertence

vem comigo
praticar essa arte imemorial de quem espera
não se sabe o quê junto à janela
encolho-me
como se fechasse uma gaveta para sempre
caminhasse onde caiu um lenço
mas levanto os olhos
quando o verão entra pelo quarto e devassa
esta humilde existência de papel

vem comigo
as palavras nada podem revelar
esqueci-as quase todas onde vislumbro um fogo
pegando fogo ao corpo mais próximo do meu

Al Berto, in O Medo - trabalho poético 1974 - 1997, edição A&A, (4ª edição) 2009.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Nocturno

Apagaste as luzes e acendeste a noite.
Fechaste as janelas e abriste o vestido.
Cheirava a flor molhada. De um país sem limites
os teus olhos fixavam-me na sombra infinita.

A que cheiram os teus olhos? Que perfume de ouro
e de água limpa e pura brotava de tuas pálpebras?
Que invisível tremor de cristais de fogo
agitava a seda lunar das tuas pupilas?

Deixaste na cama a tua almofada com fios de azeviche.
Teceste sobre o sonho um véu de brancura.
Eras a rosa pálida estendendo-se de vermelho,
a rosa do veneno que devolve a vida.

A blusa, o leque, uma pluma violeta,
o pendente, com a pérola e o diamante, no peito.
Todo aberto em paz, transparente e escuro,
sem dor, navegando rumo às tuas mãos frias.
in Poesía (1979-1996), Visor

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

in the depths of winter

And no more shall we part
It will no longer be necessary
And no more will I say, dear heart
I am alone and she has left me

And no more shall we part
The contracts are drawn up, the ring is locked upon the finger
And never again will my letters start
Sadly, or in the depths of winter

And no more shall we part
All the hatchets have been buried now
And all of birds will sing to your
beautiful heart
Upon the bough

And no more shall we part
Your chain of command has been silenced now
And all of those birds would've sung to your beautiful heart
Anyhow

Lord, stay by me
Don't go down
I will never be free
If I'm not free now

Lord, stay by me
Don't go down
I never was free
What are you talking about?

For no more shall we part
And no more shall we part

Terreno

Para a  Rute
Muitas vezes o pintor fica sozinho,
com o terreno à sua frente, acentuado,
e os demónios às bicadas na sua cabeça.
É a altura de arriscar, de subir
os degraus da escada óptica, de forçar
a realidade a caber nos seus desenhos.
É também, senhores, a parte mais perigosa
da escalada – seria mau momento
para a corda se partir. Como quem salta
de uma dor física para um amor perdido,
ter as mãos e os braços em farrapos
e poder subir ainda um pouco mais.

in Modo Fácil de Copiar uma Cidade, & ETC, 2011.

mourning air


(...)
Should I feel the moment with you
To softly whisper
I crave nothing else so much
Longing to reveal
Total honesty
I can feel your touch
I'm reaching out in this mourning air
(...)

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Finding Home

Macau 2009
Fotografia de Rodrigo Ferrão

as noites de hoje

(...)
a imobilidade traz o conforto, agarramo-nos à cadeira, de dentes cerrados, está tudo contado, tudo observado, nada escapa à falta de visão, porque não se quer ver, porque parece cedo, porque não nos queremos preparados,ainda não.
Excerto retirado daqui.

Quando eu te vir quero estar bonito

Quando eu te vir,
quero estar bonito,
te esperando entre as árvores
de um parque que tem uma lâmpada acesa.

Quero estar viajando agora
e depois, quando tu estiveres
entre as árvores, a lâmpada e eu,
quero te ver com os olhos de meu espírito
iluminado,
para te focalizar melhor na objetiva

e te amar eternamente.
in O Catador de Palavras, edição Topbooks (ed. brasileira), 2011.
Poema retirado daqui.

domingo, 15 de janeiro de 2012

blogs do ano

I’ll say this only once:

O Clube de Leitores, blog no qual colaboro, encontra-se nomeado para para Blog do Ano 2011, na categoria Livros/Literatura/Poesia.
É/Somos um blogue sobre livros, literatura e tudo o que rodeia este mundo.
Escrevemos sobre o mundo literário, sobre as palavras, seja qual for a sua forma de expressão....

- Como é que se vota?
- Simples: seguem o link do Aventar (http://aventar.eu/blogs-do-ano-2011/), procuram a categoria Livros e, com o rato lá em cima, aparece a lista de blogs a concurso. Encontram o Clube de Leitores, seleccionam o círculo que lhe corresponde e vão ao final onde diz "vote".

Nesta primeira fase as votações decorrem até 21 de Janeiro.
E mais não digo, além de que isto É IMPORTANTE PARA MIM, e um GRANDE BEM-HAJA A TODOS.

Pecar ao Domingo mesmo indo à missa

Bolo de cenoura e chocolate c/ recheio de queijo


Bolo de Cenoura
3 cenouras grandes
1 pau de canela
casca de uma laranja (sem a parte branca)
1 colher de sopa de mel
1 colher de sopa de açúcar amarelo
5 ovos
150gr de açúcar
meia lata de leite condensado
250gr de farinha
1dl de óleo
1 colher de chá de fermento
Raspam-se e cortam-se as cenouras em cubos pequenos, deita-se num tacho juntamente com a casca de laranja, o açúcar amarelo, o mel e o pau de canela, deita-se água apenas para cobrir a cenoura e leva-se a cozer. Quando a cenoura estiver cozida, escorre-se, tiram-se as cascas de laranja e o pau de canela e reduz-se a puré (com passe-vite ou varinha mágica).
Batem-se as claras em castelo e no fim acrescentam-se 50gr de açúcar; batem-se as gemas com o restante açúcar até o creme ficar esbranquiçado e junta-se o leite condensado, o óleo e a cenoura, continuando a bater. Depois, junta-se o fermento à farinha e vai-se adicionando à massa, envolvendo bem.
Por fim, envolvem-se as claras na massa, sem bater muito, para ficarmos com um creme fofo. Vai ao forno a 180º até cozer, demora cerca de 20/25 minutos.


Recheio de Mascarpone
250gr de queijo mascarpone
2 claras de ovo
baunilha q.b.
açúcar q.b.
batem-se as claras em castelo firme, junta-se o queijo e continua a bater-se com a batedeira até estar uma mistura homogénea e bem firme. junta-se a baunilha, e açúcar a gosto e vai para o frigorífico, enquanto o bolo arref ao meio, na horizontal, barrar com o recheio e tapei com a parte de cima que tinha tirado.


Cobertura de Chocolate
200gr de chocolate para culinária
meia lata de leite condensado (a que sobra do bolo!)
1 pacote de natas
açúcar, se acharmos que deve ficar mais doce
num tacho antiaderente, deitam-se as natas e o chocolate partido em pedaços pequenos, e deixa-se derreter em lume brando, mexendo sempre para ajudar a incorporar bem o chocolate nas natas. quando estiver uma mistura homogénea, junta-se o leite condensado, e continua a mexer-se, suavemente. prova-se o creme, se estiver pouco doce junta-se açúcar. quando achei que estava pronto, pus à janela e fui mexendo, para ajudar a arrefecer mais depressa.
assim que ficar morno, barrar o bolo!

sábado, 14 de janeiro de 2012

Cesare Pavese

Começava a compreender que nada é mais inabitável do que um lugar onde se foi feliz.
in A Praia, edição Ulisseia, 2011.
Via Inês Dias

Nós

Se puderes meu amor
dizer
não o escondas

pois esconder é esquecer
na saudade a maneira

que dizer meu amor
do amor
não prolonga
ou demora a distância
que em nós
se encandeia
in Poesia Reunida, edição D.Quixote, 2009.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

As Coisas Inanimadas

Os meus dedos morrem muitas vezes.
Começa pelas pontas e, de minuto em minuto,
pequenos insectos descem à palma da mão.
Como o exército de um país em guerra,
avisam ser possível – até aceitável – desaprender
o teu nome. Insisto
em escrevê-lo. De minuto em minuto,
os dedos são os meus, os teus,
outros no fecho dos caixões e
mais: aqueles com que fumas
as coisas inanimadas.

Se é isto a morte?
Tenho poucas dúvidas
e ainda a impossibilidade
e o tempo
de as anotar.

in As Coisas, 2012.

V

Vestido de cavalo e fina seda
e coberto de escamas luminosas
é como se tivesse uma outra idade
(a verdadeira) e o jovem corpo
capaz de atravessar muros e medo.
Inclinarias sobre a minha boca
um nome arrevezado com sabor
a terras estrangeiras visitadas
secretamente, em noite toda escura,
envolto, nu, em glória impermeável.
Vais-me dobrar em dois como se dobra
um dia que passou sem nada dentro,
o velho ardor de nuvens encardidas;
sem ver na minha voz como cantava
ao telefone a sombra da memória
do desejo que dói como um veneno.


in Quatro caprichos, A&A, 1999.
poema retirado daqui.

Nesta última tarde em que respiro

Nesta última tarde em que respiro
A justa luz que nasce das palavras
E no largo horizonte se dissipa
Quantos segredos únicos, precisos,
E que altiva promessa fica ardendo
Na ausência interminável do teu rosto.
Pois não posso dizer sequer que te amei nunca
Senão em cada gesto e pensamento
E dentro destes vagos vãos poemas;
E já todos me ensinam em linguagem simples
Que somos mera fábula, obscuramente
Inventada na rima de um qualquer
Cantor sem voz batendo no teclado;
Desta falta de tempo, sorte, e jeito,
Se faz noutro futuro o nosso encontro.
In Uma fábula, edição A&A, 2001.

Mudar de Casa

Para a Renata Botelho


É bom mudar de casa, de janela,
arrumar de outra maneira as ilusões,
tratar de coisas puras como tintas
e sofás, pôr ordem entre os livros
e a vida, simular a liberdade.
Parece-nos possível voltar a acreditar
na mão que nos estende um pé de salsa,
na pechincha da beleza, quando passa
no poente da razão.
Apetece cometer uma loucura,
comprar um telescópio, decorar
o canto nono dos Lusíadas,
subir umas escadas do avesso,
pensar que nunca mais teremos frio.
in Ulisses já não mora aqui, edição, & etc.

Morangos Silvestres - Ingmar Bergman (1957)

Um ser humano é um combinado de egoísmo,
sofrimento e necedade. Não comove ninguém.
Uma pedra não comove ninguém. A beleza
é um acidente banal e pressupõe a morte;
muitas vezes se rodeia de sandice, e se nos fala,
chega a ser assustador. A inteligência, refrescante
como um duche, sabe bem, no Estio; mas agora,
que é Inverno toda a vida, que lugar atribuir
à inteligência? O de criada de servir nos aposentos
da ganância. Não comove, é evidente, ninguém.
A bondade, sim, comove. Mas é tão débil
e tão rara que ninguém a ouve. Não é fácil,
assim, encontrar algo que possamos amar. Eu
tenho procurado, eu juro que não sei o que fazer:
tudo me parece, até a música, produto de uma falha.
Vou por essas ruas ao acaso e não acerto a conhecer
quem me convença que bem outra poderia ser
a vida. Tudo se mostra sob espelhos deformantes,
tudo arde numa estranha aceitação. Francamente,
não consigo perceber. E gostava tanto, mas tanto,
que alguém me demonstrasse que não tenho razão.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

a palavra

Eleva-se entre a espuma, verde e cristalina
e a alegria aviva-se em redonda ressonância.
O seu olhar é um sonho porque é um sopro indivisível
que reconhece e inventa a pluralidade delicada.
Ao longe e ao perto o horizonte treme entre os seus cílios.

Ela encanta-se. Adere, coincide com o ser mesmo
da coisa nomeada. O rosto da terra se renova.
Ela aflui em círculos desagregando, construindo.
Um ouvido desperta no ouvido, uma língua na língua.
Sobre si enrola o anel nupcial do universo.

O gérmen amadurece no seu corpo nascente.
Nas palavras que diz pulsa o desejo do mundo.
Move-se aqui e agora entre contornos vivos.
Ignora, esquece, sabe, vive ao nível do universo.
Na sua simplicidade terrestre há um ardor soberano.
in Volante Verde

You came on like a punch in the heart # 3

Crime e Castigo segundo WA.

A Última Inocência

Partir
em corpo e alma
partir.

Partir
desmoronar os olhares
pedras opressoras
que dormem na garganta.

Tenho de partir
não mais inércia sob o sol
não mais sangue aniquilado
não mais fila para morrer.

Tenho de partir.

Ataca, viajante !

in antologia poética - o correio dos navios

Morada

Sozinho na grande cama
perdido nos seus frios corredores,
ouço, de quartos interiores,
a tua voz que me chama.

Do fundo da noite enorme
onde pouso a cabeça por fora
a tua voz de alguém acorda-me
como num sono insone.

Como se a tua voz agora
antigamente me chamasse
e tudo, menos a tua voz, faltasse
fora da minha memória.
Se existisses, serias tu,
talvez um pouco menos exacta,
mas a mesma existência, o mesmo nome, a mesma morada.

Atrás de ti haveria
as mesmas duas palmeiras, e eu estaria
sentado a teu lado como numa fotografia.

Entretanto dobrar-se-ia o mundo
(o teu mundo: o teu destino, a tua idade)
entre ser e possibilidade,

e eu permaneceria acordado
e em prosa, habitando-te como uma casa
ou uma memória.

in Nenhuma Palavra e Nenhuma, edição A&A, 1999.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Indecisões amorosas

Formar futuros leitores

Anúncio de TV voltado para a arrecadação de fundos para compra de livros nos EUA, belíssimo e tem mais impacto que vários PNL's!

Numa espécie de torpor

Por vezes, não conseguimos viver com aquele que amamos - e por ele perderíamos tudo, incluindo a razão.
Vive-se sozinho, meio acordado, numa espécie de torpor. E no interior das pálpebras fazemos aparecer o rosto amado.
Gostaríamos que estivesse aqui, ao alcance das palavras que reinventamos para lhe sussurrar, ao alcance da mão e da boca, ao alcance dos sentidos e do desejo imediato.

in Do Ardor da Paixão à Morte no Poema - Dispersos, edição A&A, 2007.

The Joy of Books

Belíssimo video feitos pelos colegas da livraria Type em Toronto, Canadá.

One

(...)
falar de amor? De que amor quando o poço está seco, o alpendre vazio, o postigo para sempre fechado. De nada vale mantê-lo entreaberto - o amor chegou um dia, mas já com a velhice pelo mesmo ar saiu.
in Vou para Casa, edições Quasi, 2008.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

conta-me histórias

Desenho de Rute Castro após visita à Casa das Histórias.

Je suis venue te dire que je m'en vais

Tribute pour Gainsbourg

Falta por aqui uma grande razão

 

falta por aqui uma grande razão
uma razão que não seja só uma palavra
ou um coração
ou um meneio de cabeças após o regozijo
ou um risco na mão
ou um cão
ou um braço para a história
da imaginação
-
podemos pois está claro
transferir-nos
imaginar durante um quarto de hora
os séculos que virão
- os séculos um
e dois
da colonização -
depois
depois é este cair na madrugada ardente
na madrugada de constantemente
sem sol
e sem arpão
-
faltas tu faltas tu
falta que te completem
ou destruam
não da maneira rilkeana vigilante mortal solícita e obrigada
- não, de nenhuma maneira resultante!
nem mesmo o amor
não é o amor que falta
-
falta uma grande realmente razão
apenas entrevista durante as negociações
oclusa na operação do fuzilamento cantante
rodoviária na chama dos esforços hercúleos
morta no corpo a corpo do ismo contra ismo
-
falta uma flor
mas antes de arrancada

falta, ó Lautréamont, não só que todo o figo como o seu burro
mas que todos os burros se comam a si mesmos
que todos os amores palavras propensões sistemas de palavras e de propensões
se comam a si mesmos
muitas horas por dia até de manhã cedo
até que só reste o a o b e o c das coisas
para o espanto dos parvos
que aliás não estão a mais

isso eu o espero
e o faço
junto à imagem da
criança morta
depois que Pablo Picasso devorou o seu figo
sobre o cadáver dela
e longas filas de bandeiras esperam
devorar Picasso
que é perto da criança, ao lado da boca minha


Diogo Vaz Pinto (Lisboa, 1985) vocaliza o poema "Falta por aqui uma grande razão", de Mario Cesariny (1923 - 2006). especial para a MODO DE USAR & CO., parte do projeto "Empreste sua voz a um poeta morto". Diogo Vaz Pinto é poeta e editor da revista "Criatura".
Via editora Averno.

lugar (poema II)

Há sempre uma noite terrível para quem se despede
do esquecimento. Para quem sai,
ainda louco de sono, do meio
do silêncio. Uma noite
ingénua para quem canta.
Deslocada e abandonada noite onde o fogo se instalou
que varre as pedras da cabeça.
Que mexe na língua a cinza desprendida.

E alguém me pede: canta.
Alguém diz, tocando-me com seu livre delírio:
canta até te mudares em cão azul,
ou estrela electrocutada, ou em homem
nocturno. Eu penso
também que cantaria para além das portas até
raízes de chuva onde peixes
cor de vinho se alimentam
de raios, seixos límpidos.
Até à manhã orçando
pedúnculos e gotas ou teias que balançam
contra o hálito.
Até à noite que retumba sobre as pedreiras.
Canta - dizem em mim - até ficares
como um dia órfão contornado
por todos os estremecimentos.
E eu cantarei transformando-me em campo
de cinza transtornada.
Em dedicatória sangrenta.
(...)
in Ofício Cantante - Poesia Completa, edição A&A, 2009.

PS: Obrigado Isabel pela partilha.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Pagan Poetry

Para a Rute que gosta muito :)

Perfect Match - A Good Man Is Hard to Find

edição Cavalo de Ferro, 2006.
Blood Money, 2002.

Diante do mundo

diante do mundo,
ele exclui a fuga possível, a numeração
das palavras
como soma da simplicidade. é impossível
recordar
quando se ouve outra música.
(a distância é uma garrafa que tenho
na barriga.)
diante do mundo, ele procura o silêncio
dentro da legibilidade.
e os dias são os mesmos,
excepto a sua removabilidade,
excepto a susceptibilidade de podermos tirar
uma coisa e depois outra e outra
e outra.
daqui a pouco, diante do mundo,
direi o indizível
com as palavras que ele me tirou
(e que aparecem na minha garrafa)
e será ainda e sempre
diante do mundo, na nudez que o observa
igualmente.

Poema retirado daqui.

É isso aí

domingo, 8 de janeiro de 2012

Declaração de Amor

"Querida. Veio-me hoje uma vontade enorme de te amar. E então pensei: vou-te escrever. Mas não te quero amar no tempo em que te lembro. Quero-te amar antes, muito antes. É quando o que é grande acontece. E não me digas diz lá porquê. Não sei. O que é grande acontece no eterno e o amor é assim, devias saber. Ama-se como se tem uma iluminação, deves ter ouvido. Ou se bate forte com a cabeça. Pelo menos comigo foi assim. Ou como quando se dá uma conjunção de astros no infinito, deve vir nos livros. Ou mais provavelmente esse tempo nunca pôde existir, que é quando realmente existe o que vale a pena existir."

in Em Nome de Terra.
PS: Li este excerto hoje no facebook, numa dedicatória.

Mr. Bowie faz 65 anos, Respect!

Artigo no jornal Público - Que cor tem um camaleão na reforma?

Creep

A canção mais cool nos anos 90 para curar depressões amorosas adolescentes.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Baleia

Letter To Elise

metadona para o amor

Naquele tempo chamávamos maravilhosos
a certos momentos, não sei se hoje ainda
se diz assim, maravilhosos, mas era uma coisa
que metia um dia límpido, uma boa refeição
(com um bom vinho), amor de trepar
pelas paredes. Num desses momentos
maravilhosos, em que não sabíamos
onde íamos parar, quis negar a paixão
por ti, mas já não fui a tempo. Digamos
que fiquei agarrado, e agora, que tomo
uma espécie de metadona para o amor,
sinto saudades enormes da droga verdadeira.

[...]
in Se as Coisas Não Fossem o Que São, Assírio & Alvim, 2010.

Ouvido no metro

amanhã cedo não posso, desculpa
tenho um funeral às onze horas
ouço a mulher de pele ardida
dizer à boca do telemóvel

mas depois do enterro fico livre

e penso:
também eu conto com isso

Poema retirado daqui.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Não temos muito tempo para amar

Não temos muito tempo para amar.
A luz vai desaparecendo.
As coisas que amamos são as mesmas
que em breve perderemos.

Os piores vestidos são os que
diariamente se vão usar.
Os teus cabelos já te vi pentear,
em silêncio - íntimo,
escuro e caloroso.

Tentaria tocar-te num braço,
mas escolhi não o fazer.

Podia, mas não quis, quebrar
aquilo que se mantém imóvel.
(O mais ténue suspiro
quase seria um estridente grito).

Por isso, os momentos passam
como se quisessem ficar.
E não temos muito tempo para amar.
Uma noite. Um dia...


in Alguns Poemas, edição Língua Morta (010), 2011.

Quando A Alma Não É Pequena

Oliverio Girondo

1

Não me importa uma porra que as mulheres tenham os seios como magnólias ou como figos secos; uma pele de pêssego ou de lixa. Também é indiferente se amanhecem com um hálito afrodisíaco ou um hálito insecticida. Sou perfeitamente capaz de suportar um nariz que arrecadaria o primeiro prémio numa exposição de cenouras; mas, isso sim – e nisso sou irredutível –, não lhes perdoo, sob nenhum pretexto, que não saibam voar. Se não sabem voar perdem tempo as que pretendam seduzir-me.
Foi esta – e não outra – a razão por que me apaixonei tão loucamente por Maria Luísa.
Que me importavam os seus lábios às prestações e os seus ciúmes sulfurosos? Que me importavam as extremidades de palmípede e os olhares de prognóstico reservado?
Maria Luísa era uma autêntica pluma!
Mal amanhecia, voava do quarto para a cozinha, da sala para a despensa. A voar preparava-me o banho, a camisa. A voar fazia as compras, terminava os seus afazeres.
Com que impaciência esperava que ela voltasse, voando, de algum passeio pelos arredores. Ali, bem longe, perdido entre as nuvens, um pontinho cor-de-rosa. «Maria Luísa! Maria Luísa!»… e em poucos segundos abraçava-me com as suas pernas de pluma, para me levar, voando, a qualquer parte.
Durante quilómetros de silêncio planeávamos uma carícia que nos aproximava do paraíso; durante horas inteiras habitávamos uma nuvem, como dois anjos, e de repente, caindo em espiral, como uma folha seca, a aterragem forçada de um espasmo.
Que prazer ter uma mulher tão ligeira…, ainda que, de vez em quando, nos faça ver estrelas! Que volúpia passar os dias entre as nuvens… e as noites num só voo!
Depois de conhecer uma mulher etérea, pode achar-se algum atractivo numa mulher terrestre? Existirá alguma diferença entre viver com uma vaca ou com uma mulher que tenha as nádegas a setenta e oito centímetros do chão?
Eu, pelo menos, sou incapaz de compreender o interesse de uma mulher pedestre, e por mais que tente, não consigo sequer imaginar que se possa fazer amor senão a voar.

in Espantalhos, trad. Rui Manuel Amaral, edição Língua Morta, 2011.

Joaquim e Judite

Para o Manuel,
na Nazaré

Fizera toda a viagem com ele ao colo.

Queria despedir-se junto ao mar,
mas as partidas são tão imperfeitas
se o coração é uma caixa de cinzas
demasiado enferrujada para abrir
ao vento. Mesmo agora, depois de lavada
a última partícula que se lhe colara
à pele, sabia que o amor passara a ter
o peso exacto das ondas e, por isso,
nunca mais deixaria de o ouvir.

E ria, apontando-nos mais um turista
à procura das marcas do milagre
na pedra. Como se não fosse milagre
suficiente cada volta do mar: sermos
ainda reconhecidos, sete passos
dentro da noite, quando andamos
pelo mundo a povoá-lo de fantasmas.

in Em caso de tempestade este jardim será encerrado, edição Tea For One, Dez. 2011.

Meia-noite em paris

meia-noite em paris.
a minha meia-noite em paris pretende alcançar
as asas do meu silêncio.
não reclama qualquer ferida alheia, não
ostenta o seu coração giratório.
há um pássaro que reconhece um
momento menos sóbrio
e pousa, há uns olhos que permanecem
intactos e não olham.
é meia-noite em paris, ainda que a cidade
seja outra. e esta cidade é, de facto, outra.
o amor acende as luzes do medo.
as janelas do tempo recebem a ventania
que as sombras já não seguram.
há uma tristeza descoordenada nas imagens
dos espelhos que paris augura.
meia-noite em paris. a verdade
é directamente arrancada do coração
e com ele.

Poema retirado daqui.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Napule

Aqui o mar é sono perpétuo,
câmara para o mais terrível segredo.
Entro nele de mãos trémulas, certo
das minhas cedências. Recordo o sabor
salino de outras perdas, casas tombadas
das quais sou solitária ruína.

Eu, que tanto tenho dado à insónia,
embebo-me agora nas águas de outro dialecto

— as palavras falham, e essa é a comunicação.
Primeiro poema do livro Napule, edição tea for one, 2011.
Poema retirado daqui.

I'm going in

ao piano, um corpo pronto
a nascer tudo de novo

a promessa dedilhada do regresso
àquele ponto de encontro
circular, em que já não recordamos
quem somos, nem por quem

chorámos. aquecemos as mãos
batidas pelo vento, a pele funde-se
aos poucos com as asas, o sangue
com as florestas e os rios.

this is how it starts,
olhamos a manhã ao longe
à espera que nos desenhem um rosto.

in Small Songs, edição Averno, 2010

Ernesto Sampaio a Fernanda Alves

Não temos mão na treva –
fio de lama que escorre
à superfície da pele,
acusação afectuosa
de um brilho esmorecido,
morte trespassada
de anúncios que nos embalam
à hora de adormecer os ninhos.
Viemos do nada, errámos
pelo corpo como a força
de uma raiz exaurindo o caminho
que vai dos tímpanos ao coração.
Por isso palpitamos
e tememos e agimos.
Por isso resgatamos num sopro
a explicação das pontadas.
Por isso dizemos ser o mundo
esta treva e nós a luz que destoa.
Por isso contrabandeamos paixões,
consentindo no insulto que é dizer:
amo-te.
Não sei quem és. Não sabes quem sou.
Somos apenas alguém à espera,
fantasiando o absurdo da vida,
crentes de que um dia o nada de onde vimos
possa tornar-se o tudo para onde vamos.

in A Dança das Feridas, de , edição do autor, 2011
Via blog Bibliotecário de Babel

The Ship Song

Kind of blue

boa noite!

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Modo de Amar II

Por-me-ás de borco,
assim inclinada...

a nuca a descoberto,
o corpo em movimento...

a testa a tocar
a almofada,
que os cabelos afloram,
tempo a tempo...

Por-me-às de borco;
Digo:
ajoelhada...

as pernas longas
firmadas no lençol...

e não há nada, meu amor,
já nada, que não façamos como quem consome...

(Por-me-às de borco,
assim inclinada...

os meus seios pendentes
nas tuas mãos fechadas.)

in Poesia Reunida, edição D.Quixote, 2009

Hurt

Isto Não fica Assim!

O III Encontro Livreiro, o convívio e o encontro anual de «gentes do livro», realiza-se no dia 25 de Março de 2012, a partir das 15 horas, na livraria Culsete em Setúbal.
Traga um amigo também!

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Born to die

‎"[...]
Cause You and I
We were born to die"

Via Inês Dias, autora do maravilhoso blog Arquivo de Cabeceira.

O vestido de verão

Para a Rute
I need a fix cos I’m going down
Down to the bits that I left uptown


Os olhos amadurecidos na borda
de um desfiladeiro, os dois
soltando-se com calma.  Assim,
lê-me mais baixo, quase sem querer
e os lábios que tremam se tiver
que ser, aliviando as sílabas
mais carnudas de algumas das
palavras.

Setembro perde-se sem interesse,
não são muitos, dois, três cafés
e uma gente demorada a meio
da tarde.  Esta luz agora crua e lerda
que nos desfeia
e serve de fracas impressões.

Lá fora
árvores entorpecidas de jardins
que podiam não existir, ruas que levam
por um suave desencanto
e animais desses
de beira da estrada.  As flores
de macieira que uma brisa cheira
e imita, ou a pancada seca dos frutos
atiçados pelo vento: rolam
por um bocado no solo
e depois

ficam-se ali, a apodrecer de doçura,
sobre a breve resistência de um
desejo.  E o silêncio.
Só o espaço que vai da boca
a cada um deles.

Neste quarto a janela sobre
um pátio aonde vem muito tempo
sem nada, sombras só fugindo
umas das outras.  A chuva sobe
os carreiros e ensopa o que
pode.
 
Longe troveja, dá-me a vontade
de escrever.  Sem respirar mais fundo,
ir só apanhando as coisas do chão.
Se precisar uso o carrinho
de mão – não é vermelho,
é verde este –,
sobre ele umas quantas pinhas
e agulhas do velho pinheiro manso,
vão ajudar a começar o fogo.

Este é ainda um acto delicado.
Mesmo as coisas vêm por elas,
se as chamar.  Como se
em cada nome houvesse um fio,
eu só puxo.

Dobro um vestido
de verão que ficou na corda – cores
cheias ainda, dias inteiros.  Sei que
a certa altura apanhou
umas ameixas bravas de um
arbusto, e provou uma,
cuspindo o caroço.

Vejo-a inclinando-se de novo
sobre o tanque da roupa,
esfregando suavemente a nódoa
que deixou: manchas imprecisas,
um odor confuso.
A própria linha do corpo, de costas,
com os ombros riscando o que sente
e que não vou conseguir ler.

Já muito pouco resta
do tempo em que éramos mais
e nos ficávamos a olhar, a voz seca
antes de lhe tirarmos a pele, e as mãos
esmagadas sob uma frase que vinha
e cercava vagarosamente
as sensações mais vulgares.

Agora só uma ausência
do tamanho a que a noite
chega, uns olhos negros
que dificilmente se esquecem.

In Revista Criatura nº4, (2009)

Super Realidade

Eu era de terra quando me procuraste,
estranho à franqueza dos teus modos, baço
para os teus sentidos.

Parávamos o carro num beco qualquer,
queimávamos o rastilho das palavras
até ao deserto onde dávamos as mãos.

Lá fora, a realidade era o espaço inteiro
deitado nos vidros, o mundo caído
para dentro do silêncio.

Gastávamos depressa o tempo, perdidos
no nosso único mapa,
nenhum sinal de mudança no regresso a casa.


in Super Realidade, edição Língua Morta, Dezembro de 2011.
Poema retirado daqui.

Inventário Plebeu

A verdade, digam lá o que disserem,
é que tivemos muito pouca sorte
com os poetas (?) nossos contemporâneos.

Um nasceu em Galveias e tatua-se
ou alfineta-se para disfarçar um vazio evidente;
outro gosta de andar nu em Braga,
muito depois - e aquém - de qualquer Pacheco.
(Ignoram, ambos, que a única pila maior
do que o mundo era a do João César Monteiro.)

Um terceiro, cujo nome nunca escreverei,
é a mulher moderna da edição
às cegas e da sacanice quotidiana. O quarto
ou o quinto (gabo quem os logra distinguir)
arrotam melancolia e não admitem
o mínimo desvio à sacrossanta transfiguração da lírica.

O sexto - não, não me apetece falar aqui do sexto.

Consola-nos, isso sim, saber que uns se tornaram
entretanto romancistas (pilim, pilim), e que os restantes
hão-de ser, muito em breve, ministros
ou apenas pulhas (é, no fundo, a mesma coisa).

Enquanto, de esgoto em esgoto,
Portugal progride a olhos vistos
e é bem capaz de levar, um dia destes,
com outro Nobel nas trombas.

 in Piolho - Revista de Poesia nº6, 2011.

Hallelujah

Folsom Prison Blues

"When I was just a baby,
My Mama told me, "Son,
Always be a good boy,
Don't ever play with guns,"
But I shot a man in Reno,
Just to watch him die,
When I hear that whistle blowin',
I hang my head and cry."

So Tell The Girls I Am Back In Town

Dizem que a paixão o conheceu

Dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice

conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo

dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nunhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos
in O Medo - trabalho poético 1974 - 1997, edição A&A, 2009

As nossas madrugadas

Desperta-me de noite
o teu desejo
na vaga dos teus dedos
com que vergas
o sono em que me deito

pois suspeitas

que com ele me visto e me
defendo

É raiva
então ciume
a tua boca

é dor e não
queixume
a tua espada

é rede a tua língua
em sua teia

é vício as palavras
com que falas

E tomas-me de foça
não o sendo
e deixo que o meu ventre
se trespasse

E queres-me de amor
e dás-me o tempo

a trégua
a entrega
e o disfarce

E lembras os meus ombros
docemente
na dobra do lenços que desfazes
na pressa de teres o que só sentes
e possuires de mim o que não sabes

Despertas-me de noite
com o teu corpo

tiras-me do sono
onde resvalo

e eu pouco a pouco
vou repelindo a noite

e tu dentro de mim
vais descobrindo vales.

in Poesia Reunida, edição D.Quixote.

Gosto do mau tempo

Gosto do mau tempo.
Chuva dura no outono.
Neve pesada pelo Natal.
Liberta e alivia
algo congelado e varrido pelo vento dentro de mim.

- deitado num celeiro de feno
quando a chuva bate no telhado de lata,
e a floresta vagueia na névoa cinzenta!
É como finalmente chorar
completa e livremente
depois de uma longa hibernação na terra nua da mente.

Ou deslizando de esquis sobre o paul
num dia de Janeiro,
quando os flocos de neve jorram
pelo espaço como faúlhas brancas.

E o mundo pia,
pia com brancos sussurros
no céu –

Então estás só pela primeira vez,
completa e gloriosamente só.
Sabes que até os teus rastos de esqui
são apagados
assim que vais.

Sim, eu gosto de mau tempo.
Mas a visão do vôo dos pássaros pelo outono
pesa-me na mente.

Estive frequentemente em solo elevado
quando os guindastes guinavam para sul
com o sol por baixo de suas asas cinzentas.
Então soube tristemente
que amo o mau tempo
porque é cinzento –

como o esquecimento.

(1949)
Poema retirado daqui.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Coisas Concretas

Estou sentada na cozinha, enquanto a massa ferve.

Amo as coisas concretas
descobrir seus nomes ao pequeno-almoço:
despertador, chuva na calçada, supermercado,
beijos na siesta,
um copo de vinho, amigos,
as pequenas mãos de meu filho,
pessoas na praça,
tu...

Elas produzem as mais doces e lânguidas cócegas,
como um banquete após o jejum.
Parece-me impossível afastar-me de tais coisas:
colam-se à minha caneta e parece que não consigo sacudi-las.

No entanto,
as coisas concretas não permitem atrasos,
e a massa já está pronta.
Assim é a vida.
Quando o semear do poema começava a germinar,
eis que o mundano vem intrometer-se.
E lá tenho eu que me levantar da mesa,
enquanto a sombra de um bilioso humor assenta.

Poemas retirado daqui.

Elefante